Lei nº 14.300: entenda os principais conteúdos do marco legal da geração distribuída de energia elétrica (micro e minigeração)
Maria Tereza Fonseca Dias
A geração distribuída ou simplesmente “GD” “[...] consiste na produção de energia elétrica a partir de pequenas centrais de geração que utilizam fontes renováveis (como painéis fotovoltaicos e aerogeradores ou cogeração qualificada) [que] são conectadas à rede de distribuição, fazendo uso das instalações de unidades consumidoras” (1).
O acesso dessas (micro ou mini) centrais geradoras aos sistemas de distribuição de energia elétrica, bem como ao sistema de compensação de energia elétrica gerada e consumida já era permitido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (“ANEEL”) desde a edição da Resolução Normativa nº 482/2012 (2), por meio dos Procedimentos de Distribuição de Energia Elétrica no Sistema Elétrico Nacional, denominado “PRODIST”. Esta Resolução Normativa foi objeto de diversas alterações, pela ANEEL, desde que editada. Havia, portanto, um hiato legal para tratar da matéria e a Lei nº 14.300/2022, ao instituir o marco legal para a GD, trouxe mais segurança jurídica ao setor elétrico; em especial, para os consumidores que produzem sua própria energia proveniente de fontes renováveis, tais como a energia solar fotovoltaica.
Sancionada em 6 de janeiro de 2022, a Lei nº 14.300 é fruto da tramitação do Projeto de Lei nº 5.829/2019 (3), que inicialmente previa alteração no art. 26 da Lei da ANEEL (Lei nº 9.427/1996) (4) para reduzir as tarifas de uso dos sistemas de transmissão e distribuição e encargos a serem pagos por micro e minigeradores.
O regime jurídico instituído pela nova lei está voltado para: os empreendimentos definidos como microgeração (5) e minigeração (6) distribuídas, que foram conceituados, pela lei, considerando os limites da potência instalada pela central geradora; os tipos de fontes de energia elétrica utilizados (renováveis, despacháveis (7) e não despacháveis) e a necessidade de a central geradora estar conectada na rede de distribuição de energia elétrica por meio da instalação de unidades consumidoras.
É preciso lembrar que os serviços e instalações de energia elétrica são de competência da União (art. 21, XII, “b”, da CR/88) e, em regra, são prestados por meio de concessões e permissões, sendo as companhias estaduais (tais como, a CEMIG, COELCE, COELBA etc.) as principais prestadoras, a quem cabe, como regra, a gestão do sistema de distribuição de energia elétrica. Assim, as micro ou mini unidades geradoras e distribuidoras de energia, para se utilizarem da rede de distribuição, deverão atender à nova legislação, às normas regulatórias editadas pela ANEEL e se relacionarem com as concessionárias ou permissionárias distribuidoras de energia.
O marco legal da geração distribuída foi dividido em sete capítulos, com os seguintes conteúdos centrais:
Capítulo I – Disposições preliminares
O art. 1º contém as definições utilizadas ao longo do texto normativo.
Capítulo II – Da solicitação de acesso e de aumento de potência
Dos artigos 2º ao 7º, a legislação estabelece os direitos e deveres das unidades consumidoras com microgeração ou minigeração distribuída, quando solicitarem acesso à rede de distribuição e/ou o aumento de potência para as concessionárias e permissionárias de energia elétrica.
Deve-se assinalar nesse aspecto que:
– as concessionárias ou permissionárias de distribuição de energia elétrica (distribuidoras) deverão atender às solicitações de acesso, observadas as disposições regulamentares (art. 2º, caput);
– a ANEEL deverá estabelecer um formulário-padrão para a solicitação de acesso (art. 2º, § 3º);
– qualquer associação civil instituída para empreendimento com múltiplas unidades consumidoras ou de geração compartilhada – tais como consórcio, cooperativa, condomínio voluntário ou edilício – poderá transferir a titularidade das unidades participantes do SCEE para o consumidor-gerador de microgeração ou minigeração distribuída (art. 3º, caput);
– os interessados em implantar projetos de minigeração distribuída devem apresentar garantia de fiel cumprimento dos projetos (art. 4º);
– é vedada a comercialização de “parecer de acesso” (art. 6º, caput), que é o documento que informa as condições de acesso e os requisitos técnicos que permitam a conexão das instalações do acessante (8);
– é vedada a transferência da titularidade da unidade GD indicada no parecer de acesso até a solicitação de vistoria do ponto de conexão para a distribuidora (art. 5º, caput).
Capítulo III – Das responsabilidades financeiras
De acordo com o art. 8º, caput, a ANEEL irá editar as diretrizes e condições para calcular a participação financeira da distribuidora e a do consumidor-gerador titular da unidade consumidora de microgeração ou minigeração distribuída para atender às solicitações de nova conexão ou de alteração da conexão existente.
– a distribuidora é responsável técnica e financeira pelo sistema de medição da microgeração distribuída e por eventuais melhorias ou de reforços no sistema de distribuição (art. 8º, § 4º e § 6º);
– o consumidor-gerador interessado é responsável pelos custos de adequação do sistema de medição para conexão da minigeração distribuída (art. 8º, § 5º) e pelos investimentos necessários para implantação de tensão diferente da informada pela distribuidora (art. 8º, § 7º).
Capítulo IV – Da compensação de energia elétrica
A matéria é tratada entre os artigos 9º a 20 e disciplina o Sistema de Compensação de Energia Elétrica (“SCEE”).
Trata-se das questões mais detalhadas da nova legislação, pois devem disciplinar: quem pode e quem não pode aderir ao SCEE (art. 9º, 1º e 11); como será o ciclo de faturamento para apurar o montante de energia consumido e injetado na rede de distribuição (art. 12); as tarifas a serem cobradas tanto pelo consumo de energia quanto pelo acesso ao sistema de distribuição, se for o caso (art. 12, 17 a 19). Também disciplina a existência de excedentes de energia e seus respectivos créditos (art. 13 a 16), os critérios de compensação e os prazos de utilização.
Os destaques e inovações deste Capítulo podem ser sintetizados nas seguintes regras:
– é vedado às centrais geradoras novo enquadramento como microgeração ou minigeração distribuída, nas seguintes hipóteses (art. 11):
I – que já tenham sido objeto de registro, de concessão, de permissão ou de autorização no Ambiente de Contratação Livre (“ACL”) ou no Ambiente de Contratação Regulada (“ACR”) ou;
II – que tenham entrado em operação comercial para geração de energia elétrica no ACL ou no ACR, ou;
III – que tenham tido sua energia elétrica contabilizada no âmbito da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (“CCEE”).
– a cada ciclo de faturamento, para cada posto tarifário, a concessionária de distribuição de energia elétrica, conforme o caso, deve apurar o montante de energia elétrica ativa consumido e o montante de energia elétrica ativa injetado na rede pela unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída em sua respectiva área de concessão (art. 12, caput);
– em que pese estar assegurado o livre acesso ao sistema de distribuição para as unidades com microgeração ou minigeração distribuída, deverá ser efetuado o ressarcimento, pelas unidades consumidoras com minigeração distribuída, do custo de transporte envolvido na rede de distribuição (art. 18);
– a diretriz geral da lei é de que as regras tarifárias a serem estabelecidas pela ANEEL para as unidades consumidoras com microgeração ou minigeração distribuída, somente serão aplicadas após 31 de dezembro de 2045 (art. 17) para unidades beneficiárias da energia oriunda de microgeradores e minigeradores:
I – existentes no dia 6 de janeiro de 2022 (data de publicação da Lei nº 14.300); ou
II – que protocolarem solicitação de acesso na distribuidora em até 12 (doze) meses contados da publicação desta Lei.
– competirá ao Conselho Nacional de Política Energética (“CNPE”), ouvidos a sociedade, as associações e entidades representativas, as empresas e os agentes do setor elétrico, estabelecer as diretrizes para valoração dos custos e dos benefícios da microgeração e minigeração distribuída (art. 17, § 2º);
– as instalações de iluminação pública poderão participar do SCEE, caso em que a rede pública de iluminação do Município será considerada unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída, desde que atendidos os requisitos regulamentares da ANEEL (art. 20).
Capítulo V – Das concessionárias e permissionárias
Os arts 21 a 24 deste Capítulo disciplinam em que hipóteses as concessionárias e permissionárias (distribuidoras) poderão contratar serviços de geração de energia de micro e minigeradores distribuídos. Devem ser destacadas as seguintes normas:
– a distribuidora poderá contratar serviços de microgeradores e minigeradores distribuídos para beneficiar suas redes ou microrredes de distribuição mediante remuneração desses serviços conforme regulação da ANEEL (art. 23, caput);
– a distribuidora deverá promover chamadas públicas para credenciamento de interessados em comercializar os excedentes de geração de energia oriundos de projetos de microgeradores e minigeradores distribuídos, nas suas áreas de concessão, para posterior compra desses excedentes de energia, na forma de regulamentação da ANEEL (art. 24, caput).
Capítulo VI – Disposições transitórias
Os artigos 25 a 27 tratam das disposições transitórias, do atual sistema, para o que foi estabelecido em lei. Esta disciplina mostrou-se necessária notadamente em virtude do fato de que serão instituídas tarifas às centrais de mini e microgeração distribuídas, pela utilização do sistema de distribuição, bem como deverão ser estabelecidas novas tarifas para a compensação da energia gerada e injetada na rede.
– após 6 de janeiro de 2023 a Conta de Desenvolvimento Energético (“CDE”) – encargo setorial estabelecido pela Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002 – custeará temporariamente as componentes tarifárias não associadas ao custo da energia e não remuneradas pelo consumidor-gerador (art. 25, caput);
– a incidência das novas tarifas pela utilização do sistema de distribuição pelas mini e microgeradoras já existentes ou que protocolarem acesso até 6 de janeiro de 2023, somente ocorrerá a partir de 31 de dezembro de 2045 (art. 26 c/c art. 17). Contudo, nos empreendimentos não enquadrados nessas hipóteses ou quando houver algumas situações (tais como: encerramento da relação contratual entre consumidor participante do SCEE e a distribuidora que não seja troca de titularidade; ocorrência de irregularidade no sistema de medição atribuível ao consumidor; solicitação de aumento de potência após 6 de janeiro de 2023), o faturamento de energia dessas unidades deverá ser calculado considerando um percentual de componente tarifária que remunere o serviço, a depreciação dos ativos e a manutenção do serviço de distribuição. O art. 27 define os percentuais das componentes tarifárias que irão incidir no período de 2023 a 2029 até que seja aplicada a integralidade da regra do art. 17.
– os percentuais das componentes tarifárias até 2028 são distintos para as unidades de minigeração distribuída acima de 500 kW (quinhentos quilowatts) em fonte não despachável na modalidade autoconsumo remoto ou na modalidade geração compartilhada em que um único titular detenha 25% (vinte e cinco por cento) ou mais da participação do excedente de energia elétrica (art. 27, § 1º);
– para as unidades que protocolarem solicitação de acesso na distribuidora entre o 13º (décimo terceiro) e o 18º (décimo oitavo) mês contados da data de publicação desta Lei, a aplicação do art. 17 desta Lei dar-se-á a partir de 2031 (art. 27, § 2º).
Capítulo VII – Disposições finais
Diversos são os conteúdos tratados nas disposições finais, inclusive alterações em outras legislações correlatas. Destacamos os seguintes:
– a microgeração e a minigeração distribuídas caracterizam-se como produção de energia elétrica para consumo próprio (art. 28). Esta regra poderá trazer impactos em âmbito tributário, por se tratar de hipótese que pode afastar a cobrança de ICMS, pelos Estados-membros;
– a ANEEL e as concessionárias ou permissionárias de distribuição de energia elétrica, a fim de cumprir as disposições desta Lei, deverão adequar seus regulamentos, suas normas, seus procedimentos e seus processos em até 180 (cento e oitenta) dias da data de publicação desta Lei (art. 30);
– qualquer alteração de norma ou de procedimento das distribuidoras relacionada à microgeração ou minigeração distribuída ou às unidades consumidoras participantes do SCEE deverá ser publicada com prazo mínimo de 90 (noventa) dias para sua entrada em vigor (art. 31);
– a ANEEL promoverá a divulgação dos custos e dos benefícios sistêmicos das centrais de microgeração e minigeração distribuída de forma a manter a transparência das informações à sociedade (art. 32);
– a GD poderá ser remunerada por benefícios ambientais, considerando a introdução do § 1º-J, na Lei nº 9427/1996, pelo art. 34 da Lei nº 14.300, que dispõe: “§ 1º-J As diretrizes de que trata o § 1º-G deste artigo também são aplicáveis aos microgeradores e minigeradores distribuídos”. O art. § 1º-G da Lei nº 9427/1996, estabelece que “O Poder Executivo federal definirá diretrizes para a implementação, no setor elétrico, de mecanismos para a consideração dos benefícios ambientais, em consonância com mecanismos para a garantia da segurança do suprimento e da competitividade, no prazo de 12 (doze) meses, contado a partir da data de publicação deste parágrafo”. Não se sabe, contudo, até a presente data, como serão definidos e mensurados esses benefícios ambientais;
– o Programa de Energia Renovável Social (“PERS”), destinado a investimentos na instalação de sistemas fotovoltaicos e de outras fontes renováveis, na modalidade local ou remota compartilhada, aos consumidores da Subclasse Residencial Baixa Renda (art. 36), será implementado com recursos do Programa de Eficiência Energética (“PEE”) (art. 36, § 2º);
– para a execução do PERS, a distribuidora de energia elétrica promoverá concorrências e chamadas públicas para credenciamento de empresas especializadas com o objetivo de implementar as instalações dos sistemas fotovoltaicos, locais ou remotos, ou de outras fontes renováveis (art. 36, § 4º e § 6º);
– caberá à ANEEL adaptar as normas pertinentes, implementar demais medidas para a operacionalização dos procedimentos estabelecidos e realizar o acompanhamento físico e contábil do PERS (art. 36, § 5º).
Do ponto de vista do direito administrativo regulatório, algumas questões jurídicas têm sido levantadas após a entrada em vigor da nova lei. Entre elas a sua retroatividade sobre os regulamentos anteriores da ANEEL. Além da questão da “remuneração por benefícios ambientais”, tratada na seção anterior, há outras hipóteses de retroatividade da lei sobre as operações atuais, em geral para beneficiar a geração distribuída. De acordo com o art. 12, § 4º da Lei nº 14.300, o consumidor-gerador titular da unidade consumidora onde se encontra instalada a microgeração ou minigeração distribuída pode solicitar alteração dos percentuais ou da ordem de utilização dos excedentes de energia elétrica ou realocar os excedentes para outra unidade consumidora do mesmo titular, perante a concessionária ou permissionária de distribuição de energia elétrica, e esta terá até 30 (trinta) dias para operacionalizar o procedimento. Trata-se de opção válida para novos e antigos projetos.
Como descrito, há um longo caminho regulatório a ser percorrido pela ANEEL após a edição da Lei nº 14.300, razão pela qual deve-se acompanhar a agenda regulatória da Agência, recentemente divulgada (9).
A equipe Regulatório Administrativo do VLF está se debruçando sobre os impactos da Lei nº 14.300 na GD e poderá trazer novas discussões, em breve, sobre o tema.
Maria Tereza Fonseca Dias
Sócia-executiva e Coordenadora da Equipe de Direito Administrativo e Regulatório do VLF Advogados
(1) DIUANA, F.; MORAIS, R.; LATORRE, C. Glossário: setor elétrico. Nexo Políticas Públicas, 5 out. 2020. Disponível em: https://pp.nexojornal.com.br/glossario/Setor-el%C3%A9trico. Acesso em: 25 jan. 2022.
(2) ANEEL. Resolução Normativa nº 482/2012. Disponível em: http://www2.aneel.gov.br/cedoc/bren2012482.pdf. Acesso em: 25 jan. 2022.
(3) BRASIL. Câmara dos Deputados. PL nº 5.829/2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0zs65m0d50tcz1sq0gpyq74ny727909843.node0?codteor=1829917&filename=PL+5829/2019. Acesso em: 25 jan. 2022.
(4) Art. 26. Cabe ao Poder Concedente, diretamente ou mediante delegação à ANEEL, autorizar: [...] IV – a comercialização, eventual e temporária, pelos autoprodutores, de seus excedentes de energia elétrica.
(5) Art. 1º, inciso XI – microgeração distribuída: central geradora de energia elétrica, com potência instalada, em corrente alternada, menor ou igual a 75 kW (setenta e cinco quilowatts) e que utilize cogeração qualificada, conforme regulamentação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), ou fontes renováveis de energia elétrica, conectada na rede de distribuição de energia elétrica por meio de instalações de unidades consumidoras.
(6) Art. 1º, inciso XIII – minigeração distribuída: central geradora de energia elétrica renovável ou de cogeração qualificada que não se classifica como microgeração distribuída e que possua potência instalada, em corrente alternada, maior que 75 kW (setenta e cinco quilowatts), menor ou igual a 5 MW (cinco megawatts) para as fontes despacháveis e menor ou igual a 3 MW (três megawatts) para as fontes não despacháveis, conforme regulamentação da Aneel, conectada na rede de distribuição de energia elétrica por meio de instalações de unidades consumidoras.
(7) Art. 1º, inciso IX – fontes despacháveis: as hidrelétricas, incluídas aquelas a fio d'água que possuam viabilidade de controle variável de sua geração de energia, cogeração qualificada, biomassa, biogás e fontes de geração fotovoltaica, limitadas, nesse caso, a 3 MW (três megawatts) de potência instalada, com baterias cujos montantes de energia despachada aos consumidores finais apresentam capacidade de modulação de geração por meio do armazenamento de energia em baterias, em quantidade de, pelo menos, 20% (vinte por cento) da capacidade de geração mensal da central geradora que podem ser despachados por meio de um controlador local ou remoto.
(8) Sobre o conceito, cf. o Manual de Geração Distribuída da CEMIG em: https://www.cemig.com.br/manual-de-geracao-distribuida/. Acesso em: 25 jan. 2022.
(9) ANEEL. Agenda regulatória para o Biênio 2022/2023. Disponível em: https://www.aneel.gov.br/documents/660863/23331082/Formul%C3%A1rios.pdf/5dccaffb-59b4-2eb2-9e49-d1e8f0da5b4a. Acesso em: 25 jan. 2022.