Responsabilização dos administradores e a Lei das S.A.: um panorama jurisprudencial
Letícia Camargos e Pedro Ernesto Rocha
As ações de responsabilidade civil dos administradores das sociedades anônimas estão previstas no artigo 159 da Lei nº 6.404/76 (“Lei das S.A.” ou “LSA”) e têm como fundamento material basilar o artigo 158 da mesma lei. Aqui, analisaremos os fatores primordiais considerados pelos Tribunais para embasar a condenação de administradores.
De acordo com o regime de responsabilidade adotado pela LSA (2), o administrador não é responsável pelas obrigações oriundas de atos regulares de gestão (artigo 158, caput) ou por atos praticados de boa-fé visando ao interesse da Companhia (artigo 159, §6º). Pode se dizer que este último dispositivo aplica a Business Judgment Rule ao Direito Societário brasileiro (3), a fim de proteger os administradores das companhias e delimitar a sua responsabilização a circunstâncias específicas (4) (5) (6).
A responsabilidade civil é amparada pela máxima prevista no Código Civil (7) segundo a qual aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo (artigo 927). A LSA, em plena simetria, determinou que os administradores cometeriam ato ilícito quando (i) violassem lei ou estatuto (artigo 158, II); ou (ii) causassem prejuízos à sociedade, mediante dolo ou culpa, dentro de suas atribuições e poderes (artigo 158, I).
Nesse sentido, nas hipóteses de prática de ato ilícito, como visto no Informativo VLF nº 85 de 27 de outubro de 2021, os administradores poderão responder pessoalmente pelos prejuízos causados, por meio da propositura da competente ação de responsabilidade civil (8). Os Tribunais brasileiros, contudo, não trazem interpretações inovadoras ou mesmo extensivas aos referidos dispositivos legais e tendem a responsabilizar os administradores quando fica constatado um elemento de ilegalidade, que pode ter:
(a) um viés objetivo, em razão de o ato em análise ter sido praticado em descumprimento de lei ou de estatuto, nos termos do artigo 158, II (é o que aconteceria, por exemplo, se um administrador contratasse uma operação financeira de valor superior àquele que o Estatuto Social lhe permite);
(b) um viés subjetivo, em razão de o ato praticado estar dentro do escopo da legalidade e do escopo de atuação da administração, mas a ação do administrador em praticá-lo estar eivada de culpa ou dolo, nos termos do artigo 158, I (é o que aconteceria, por exemplo, se um administrador contratasse uma operação sem analisá-la de maneira diligente).
Por outro lado, ainda que seja evidenciado eventual dano decorrente de atos de gestão, uma vez constatado que os administradores praticaram tais atos com fulcro no interesse social e seguindo os parâmetros legais e estatutários de suas incumbências (inclusive os parâmetros subjetivos ligados aos deveres fiduciários dos administradores, tais como os deveres de lealdade e diligência), a responsabilidade pessoal é afastada, prevalecendo a regra do Business Judgment.
Nesta linha de raciocínio, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) já decidiu pela condenação dos administradores em razão de ilegalidade decorrente do descumprimento dos limites de poderes que lhe foram impostos pelo estatuto ou pela lei, conforme a seguir:
Com efeito, se no âmbito externo os vícios de representação podem não ser aptos a desobrigar a companhia perante terceiros – isso por apreço à boa-fé, aparência e tráfego empresarial –, no âmbito interno fazem romper o nexo de imputação do ato à sociedade empresarial. Internamente, a pessoa jurídica não se obriga por ele, exatamente porque manifestado por quem não detinha poderes para tanto. Não são imputáveis à sociedade exatamente porque o são ao administrador que exorbitou dos seus poderes. (...) Assim, no âmbito societário, o diretor que exorbita de seus poderes age por conta e risco, de modo que, se porventura os benefícios experimentados pela empresa forem de difícil ou impossível mensuração, haverá ele de responder integralmente pelo ato, sem possibilidade de eventual “compensação”. (10)
Em outra oportunidade, o STJ negou provimento ao recurso de Diretor que promoveu operações que descumpriram obrigações da Companhia para com a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) e foi condenado em primeira instância a ressarcir a sociedade pelos prejuízos causados (art. 158, caput e inciso I):
Em outras palavras, como administrador principal da companhia tinha por obrigação implementar e fomentar boas práticas de governança corporativa, utilizando-se, para isso, de parâmetros/instrumentos legais e morais com vistas a aumentar o valor da sociedade, facilitar seu acesso ao capital e contribuir para a sua pereneidade, o que passa ao largo da hipótese ora em foco, na qual constatada a inadequação de procedimentos aptos a ensejar prejuízos à companhia, que inclusive sofreu penalização por parte da entidade de fiscalização (CVM). (11)
Em outro julgado, no Tribunal de Justiça de São Paulo, discutia-se a legalidade da decisão do Conselho de Administração de retenção parcial dos lucros sociais do exercício da Companhia, ato que viabilizou a distribuição apenas dos dividendos mínimos obrigatórios aos acionistas. Apesar de a autora, acionista minoritária, postular pelo abuso dessa deliberação, o Tribunal entendeu que o ato deveria ser preservado com base na Business Judgment Rule:
Ora, não havendo qualquer imputação de malversação dos valores retidos, que, conforme o orçamento apresentado, destinam-se a investimento dentro da própria companhia, não cabe, de fato, ao Poder Judiciário a intervenção nas decisões econômicas que orientam a companhia (...). Aplica-se, nesse ponto, a denominada business judgment rule (regra da autonomia da decisão empresarial), não devendo o Poder Judiciário, demonstrada a inexistência de abuso do poder de controle, imiscuir-se nas decisões da companhia relativas à condução de seus negócios. (12)
Por todo o exposto, a análise jurisprudencial revelou a tendência dos julgadores de buscar um elemento de ilegalidade (descumprimento de lei ou do estatuto ou dolo ou culpa dos administradores no desenvolvimento de suas funções) para amparar a responsabilização de administradores, seguindo a literalidade do artigo 158 da LSA (13).
É importante destacar, por fim, que considerável parte das ações de responsabilidade de administrador encontradas na pesquisa realizada não tiveram julgamento do mérito em razão da inobservância de requisitos formais para a propositura, tais como as preliminares de legitimidade ativa e passiva, prescrição e interesse de agir, como será visto em trabalhos posteriores neste mesmo Informativo.
Letícia Camargos
Estagiária da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Pedro Ernesto Rocha
Coordenador da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) O tema da responsabilidade civil dos administradores na Lei das S.A. foi inicialmente abordado no Informativo VLF nº 85 de 27/10/2021, que pormenorizou as ações de responsabilidade previstas no texto da Lei 6.404/76. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=957. Acesso em: 21 dez. 2021.
(2) BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm. Acesso em: 21 dez. 2021.
(3) Ver: EIZIRIK, Nelson. A Lei das S.A. comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 357; e CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas: 3º volume, artigos 138 a 205. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 580.
(4) BAINBRIDGE, Stephen. The Business Judgment Rule as Abstention Doctrine. 2004. UCLA School of Law. p. 84-87.
(5) STJ. Entendimento proferido no julgamento do Recurso Especial n.º 1.349.233.
(6) Conforme art. 153 da Lei das S.A., o administrador deverá empregar cuidado e diligência para atender aos interesses da Companhia. Trata-se de uma obrigação, portanto, de meio. Seguindo a doutrina de Fábio Konder Comparato, “tratando-se de uma obrigação de meios, o devedor só será responsável na medida em que se provar não a falta de resultado (que não entra no âmbito da relação), mas a total ausência do comportamento exigido, ou um comportamento pouco diligente e leal. O ônus da prova incumbe, pois, ao credor”. (COMPARATO, Fábio Konder. Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense.)
(7) BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 21 dez. 2021.
(8) Essa ação deverá ser promovida pela companhia, após deliberação em assembleia-geral (ação social uti universi); por qualquer acionista, caso a companhia permaneça inerte ao menos 3 (três) meses após a assembleia-geral que determinou o ajuizamento (ação social uti singuli substitutiva); pelos acionistas que representem, pelo menos, 5% (cinco por cento) do capital social, caso a assembleia delibere pela não propositura da ação (ação social uti singuli derivada); ou, ainda, pelo acionista ou por terceiro diretamente prejudicado por ato de administrador (ação individual).
(9) É importante frisar que o administrador estará exonerado de responsabilidade, salvo erro, dolo, fraude ou simulação, quando a Assembleia Geral da sociedade aprovar, sem reserva, as demonstrações financeiras e as contas (art. 134, §3º). Apesar de divergências, o entendimento predominante no STJ é de que enquanto não anulada, a Assembleia Geral que aprovou as contas dos administradores sem reservas tem o condão de exonerá-los de responsabilidades. Portanto, nesses casos, a propositura da ação de responsabilidade civil contra administradores só seria possível após a anulação da Assembleia Geral de aprovação das contas. Reforça-se, de acordo com esse entendimento, que a assembleia só poderia ser anulada mediante ação específica, e não por deliberação em assembleia. (Exemplos de jurisprudências acerca desse tema: Agravo em Recurso Especial nº 257.573, no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 950.104, no Recurso Especial nº 179.008, no Recurso Especial nº 256.596, no Recurso Especial nº 1.515.710, e no Recurso Especial nº 1.313.725.
(10) Nesses casos, ainda que não sejam evidenciados danos e prejuízos diretos percebidos pela Companhia, o administrador deverá responder, ao menos, pelo valor da obrigação contraída ilicitamente.
(11) STJ. Entendimento proferido no julgamento do Recurso Especial 1.349.233.
(12) STJ. Entendimento proferido no julgamento do Recurso Especial 1.475.706.
(13) TJSP. Entendimento proferido no julgamento da Apelação Cível nº 1002549-61.2016.8.26.0565.
(14) “Estando a conduta do administrador (ação ou omissão) contida no âmbito dos poderes regulares de gestão e que são ínsitos à função administrativa, a responsabilidade civil apenas sucederá quando e se comprovada a existência de dolo específico ou eventual (vontade manifesta de causar o prejuízo, ou a assunção consciente do risco de produzi-lo) ou, ainda, nos casos de culpa (imperícia, imprudência ou negligência).” (STJ. Entendimento proferido no julgamento do Recurso Especial 1.475.706).