Segundo o STJ, quem transferiu dívidas para terceiros não pode alegar judicialmente nulidades do contrato original
Felipe Melazzo e Rodrigo Andrade Santos
Recentemente, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), por meio do julgamento do Recurso Especial nº 1.423.315/PR (“Recurso”), considerou a empresa que transferiu a respectiva dívida para terceiros como parte ilegítima para discutir as nulidades do contrato originário.
Para melhor entendimento desse tema, serão analisados os conceitos jurídicos relacionados (i) às hipóteses de nulidade contratual; e (ii) à cessão contratual. Na sequência, será detalhado o entendimento da terceira turma do STJ com relação ao Recurso, com a conclusão pertinente.
1) Hipóteses de nulidade contratual
Nas hipóteses nas quais não são preenchidos os pressupostos básicos para a existência válida de determinado contrato, este e as respectivas cláusulas podem ser considerados nulos. E, uma vez que é declarada a nulidade, eles não produzirão os efeitos desejados pelas partes envolvidas.
A nulidade é justamente “a sanção imposta pela lei aos atos e negócios jurídicos realizados sem observância dos requisitos essenciais, impedindo-os de produzir os efeitos que lhes são próprios” (1).
De modo geral, um contrato pode ser declarado nulo quando ofende questões de ordem pública, isto é, aquelas que interessam toda a sociedade (2).
Os artigos 166 e 167 da Lei Federal nº 10.406/2002 (a seguir referida como “Código Civil”) elencam, em termos gerais, as hipóteses nas quais os contratos serão considerados nulos.
Segundo o artigo 166, considera determinado negócio nulo quando: (i) “celebrado por pessoa absolutamente incapaz”; (ii) “for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto”; (iii) “o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito”; (iv) “não revestir a forma prescrita em lei” ou “for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade”; (iv) “tiver por objetivo fraudar lei imperativa”; e (v) “a lei taxativamente o declarar nulo ou proibirlhe a prática, sem cominar sanção”. E, segundo o artigo 167, o negócio jurídico simulado também é nulo.
Durante a execução de um contrato, muitas outras situações podem ocorrer além da declaração de eventual nulidade. O contrato e as obrigações que surgem dele, por exemplo, podem ser transferidos para outras pessoas diferentes daquelas que firmaram o documento.
2) Cessão contratual
A transferência da posição ativa ou passiva do conjunto de direitos e obrigações decorrentes de um contrato é chamado de cessão de contrato ou cessão de situações contratuais (3). Essa transferência pode ocorrer de duas formas, a depender da parte cuja posição foi objeto de transferência. São elas a cessão de crédito ou assunção de dívida.
A cessão de crédito é o negócio jurídico pelo qual determinado credor transfere a um terceiro a sua posição, ou seja, o direito de exigir seu crédito contra o devedor. Dessa forma, recebe o terceiro, chamado de cessionário, o direito de crédito transferido com todos os acessórios e garantias (4).
Por exemplo, em um contrato de mútuo, “A” (mutuante/credor) se compromete a emprestar para “B” (mutuário/devedor) a quantia de 10 mil reais, mediante o pagamento por esse último em 12 parcelas mensais futuras. Por meio de uma cessão de crédito, “A” poderia transferir o direito de crédito de receber a quantia emprestada para “C”. Dessa forma, graças à cessão, “B” vai entregar a quantia para “C” ao invés de entregar para “A”. No exemplo, “B” é o cedido; “A” é o cedente; “C” é o cessionário.
A assunção de dívida, por sua vez, é a transferência da posição de devedor a um terceiro. Se na cessão de crédito há a transferência do crédito, na assunção de dívida há a “cessão do débito”. Dessa forma, aquele que transferiu o débito, o devedor primário, fica liberado do pagamento e desaparece sua responsabilidade patrimonial pela satisfação da obrigação transferida (5).
No exemplo dado anteriormente, se fosse um caso de assunção de dívida, “B” poderia transferir para terceiro a obrigação de quitar a sua dívida e, com isso, o terceiro ficaria totalmente responsável pelo pagamento da quantia de 10 mil reais.
Nessa linha de entendimento, um determinado contrato pode ser considerado nulo e as respectivas obrigações podem ser transferidas. Esclarecidos tais pressupostos, passa-se enfim para a análise do Recurso.
3) Recurso Especial nº 1.423.315/PR
O Recurso Especial nº 1.423.315/PR (6) tratou de uma ação de revisão contratual promovida por empresa do ramo agropecuário (“Empresa”) contra determinado banco. Na qualidade de devedora, a Empresa alegou a nulidade de determinadas cláusulas do contrato firmado com o banco.
Entretanto, no momento da proposição da ação, a Empresa não era mais devedora das obrigações decorrentes do contrato. Estas foram assumidas por terceiros em momento anterior à propositura da ação, por meio de um negócio de assunção de dívidas.
Dessa forma, questionou-se por meio do Recurso: a Empresa, devedora primária da obrigação, poderia ajuizar ação contra o banco para alegar nulidade de um contrato no qual ela não era mais integrante (na condição de devedora)?
Para a Terceira Turma do STJ no julgamento do Recurso, a resposta é negativa. A Empresa não poderia sequer promover a ação, pois, não teria legitimidade para tanto. Isso porque a devedora originária transferiu para terceiros a responsabilidade pelo débito, via negócio de assunção de dívidas.
Segundo o STJ, restaram caracterizados todos os requisitos necessários para a assunção de dívida: (i) a assunção ocorreu com a concordância expressa do credor (o banco); (ii) o novo devedor não era insolvente ao tempo da assunção; e (iii) houve a expressa exoneração da devedora primitiva (a empresa do ramo agropecuário).
De acordo com o STJ, o Tribunal enfatizou ainda que a empresa recorrente, para que pudesse discutir eventuais nulidades das cláusulas contratuais, deveria primeiramente retornar à condição de devedora da obrigação junto ao banco.
Em linhas gerais, para a Terceira Turma do STJ, aquele que transfere integralmente seus débitos para terceiros não pode alegar nulidade em momento posterior à transferência, pois, não compõe mais a relação obrigacional.
Nesse contexto, em caso de eventual cessão contratual, é importante que a parte cedente sempre analise antes da transferência da respectiva posição contratual se existe interesse em revisar os termos da referida obrigação a ser cedida. Isso porque aqueles que não mais compõem a relação jurídica originária, em razão da respectiva transferência para terceiros, se tornam partes ilegítimas para alegar eventual nulidade.
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Felipe Melazzo
Advogado da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
Rodrigo Andrade Santos
Advogado da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
(1) e (2) GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – parte geral. v. 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2019, p. 508.
(3) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações. v. II. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2020, p. 369.
(4) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações. v. II. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2020, p. 345.
(5) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações. v. II. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2020, p. 368.
(6) BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Terceira Turma). Recurso Especial nº 1.423.315/PR. Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, 21 set. 2021. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 24/09/2021. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=REsp%201423315. Acesso em: 14 jan. 2022.