Negócios jurídicos processuais no ordenamento jurídico brasileiro
Guilherme Calais e Diego Murça
Desde a sua concepção, o Código de Processo Civil (“CPC”) busca superar o histórico clima de antagonismo dos litigantes em ações judiciais, implementando mecanismos que possibilitem a convergência das partes para solução da demanda de forma célere e justa.
A partir deste preceito é que se formalizou a teoria dos negócios jurídicos processuais (“NJPs”), que confere aos litigantes a possibilidade de flexibilizar a marcha processual e procedimental, a critério de suas respectivas conveniências, desde que formalizadas em causas em que se admita a autocomposição, cujas partes sejam plenamente capazes e que as estipulações se limitem a ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, a teor do que dispõe o art. 190 do CPC (1).
Segundo Didier Jr., o denominado NJP nada mais é que um “fato jurídico voluntário, em cujo suporte fático se confere ao sujeito o poder de regular, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais ou alterar o procedimento” (2).
A regulação dos interesses processuais, desde que desprovida de ilegalidades, dispensa aceitação do magistrado e produz efeito jurídico imediato, de acordo com o disposto no art. 200 do CPC (3). Inclusive, ao julgar o Recurso Especial nº 1.810. 444/SP, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) confirmou a desnecessidade de interferência do magistrado, pois “quando estiverem em jogo faculdades e interesses exclusivos das partes, caberá ao juiz interferir apenas para controle de sua legalidade” (4).
Em outras palavras, o regramento inter pars deve buscar a compatibilidade entre a vontade recíproca das partes, sem violar os preceitos constitucionais e os poderes do próprio julgador, cuja atuação não pode ser condicionada ao ajuste proposto pelos litigantes.
Como visto, o negócio jurídico processual é um passo importante para estreitar a triangulação processual e garantir uma resposta jurisdicional célere aos interessados. O instituto, contudo, ainda é timidamente utilizado no ordenamento jurídico brasileiro.
O comum desuso do NJP traz à tona a discussão do motivo pelo qual, mesmo após tanto tempo desde o início de sua vigência, o CPC ainda encontre tanta resistência dos agentes processuais aos mecanismos que foram criados com o objetivo de promover um ambiente judicial menos acirrado e com soluções consideradas mais efetivas.
Por que a opção de se enfrentar o caminho com mais obstáculos quando a própria lei permite a mitigação de alguns formalismos em prol do rápido provimento jurisdicional?
Parece-nos que ainda há certa resistência dos operadores do direito, sejam eles magistrados, membros do ministério público, advogados, entre outros, quanto à aplicação ou mesmo o incentivo ao uso destes institutos que interferem diretamente na dinâmica processual.
De fato, outros mecanismos processuais implementados pelo CPC para buscar a solução pacífica de controvérsias, como a mediação, ou para garantir a celeridade do trâmite processual, como a limitação das hipóteses de cabimento do Agravo de Instrumento, foram melhor absorvidos pelos jurisdicionados.
Por outro lado, a despeito do avanço na redução do tempo necessário à solução das controvérsias judiciais no Brasil, sobretudo neste período de frequente utilização dos processos eletrônicos, ainda nos deparamos com a demora excessiva na apreciação das demandas postas a crivo do Judiciário, com significativa parcela de culpa dos próprios jurisdicionados e seus procuradores.
A celeridade na resposta à provocação judicial, a estipulação de prazos menores para o cumprimento das obrigações processuais ou a sua conclusão pelo interessado independentemente de intimação, são medidas capazes de garantir a duração razoável do processo e permitir uma prestação jurisdicional mais célere.
Estas diretrizes podem ser previamente estipuladas pelas partes, a partir da aplicação do NJP, observadas às garantias legais inerentes. Então por que não o fazer? É preciso não apenas desmistificar a possibilidade de interferência direta na dinâmica processual para melhor adequá-la ao interesse das partes por meio do NJP, mas também incentivá-la.
O jurisdicionado é frequentemente questionado sobre o seu eventual interesse na realização da audiência de conciliação. Por que não o questionar sobre o eventual interesse em promover o NJP?
A percepção é de que a principal justificativa pelo desuso de mecanismos inovadores como o NJP é o abarrotamento do Judiciário com demandas cada vez menos necessárias. Sem tempo para um período de experimentação e consolidação do instituto, os agentes processuais acabam optando pela via ordinária de condução das demandas, o que coloca a justiça brasileira em um looping de um formalismo que, infelizmente, acaba sendo prejudicial a todos os envolvidos na relação processual.
Se interessou pelo tema? Mais informações sobre o uso do negócio jurídico processual podem ser obtidas com a equipe cível do VLF Advogados.
Guilherme Calais
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Diego Murça
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Art. 190 do CPC. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
(2) DIDIER JÚNIOR, Fredie. Negócios jurídicos processuais atípicos no Código de Processo Civil de 2015. Revista Brasileira da Advocacia, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 59-84, abr./jun. 2016.
(3) Art. 200 do CPC. Os atos das partes consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais.
(4) REsp 1810444/SP, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 23/02/2021, DJe 28/04/2021. Inteiro teor disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201803376440&dt_publicacao=28/04/2021. Acesso em: 24 jan. 2022.